domingo, 12 de janeiro de 2020

Pela fé





Eu sou a videira, vós os ramos; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer.


João 15:5

As ervas da Terra, que curam e alimentam, e a sabedoria dos cientistas, tudo provém do Criador. Podemos usar sua obra para abrir caminhos, encontrar soluções e, conforme Sua imagem, agirmos também como co-criadores. No entanto, como saberemos que erva escolher ou que teoria aplicar, se estivermos cegos e surdos? Se nos afastarmos de Sua presença, nem mesmo a tarefa mais simples parecerá tão simples. Por outro lado, mesmo o mais simples dos humanos poderá servir ao propósito divino se o Espírito Santo atuar nele. 

Para que tenhamos semelhança com Deus, agindo como co-criadores; para que possamos viver como seus filhos, é preciso que estejamos n'Ele. Então, a terra dará seu fruto, o mar se abrirá, e o que nossas mãos tocarem será abençoado. É mérito d'Ele, e não de nossa inteligência ou ambição, que sejamos capazes de realizar nossos sonhos e objetivos. É por essa razão também que devemos "buscar primeiro o Seu reino e Sua justiça"; crendo que o resto nos será acrescentado. Assim, pela fé, estabelecemos Deus como prioridade em nossas vidas, dedicando a Ele as primícias do nosso tempo. 

A injustiça humana

Em nosso caminho, iremos nos deparar com a injustiça humana. No entanto, se vivermos pela fé, não estaremos sob a jurisdição humana, mas divina. Assim, nenhum mal que nos alcance pode prevalecer contra nós. Pelo contrário, o mal se converterá em bem. É dessa forma também, que nos tornamos bênção para os que estão à nossa volta e testemunhamos a Glória dele. Busquemos seguidamente proximidade com Deus Criador, por meio da oração e leitura atenta da sua Palavra, para que possamos permanecer n'Ele e sob a Sua jurisdição, não esquecendo da Salvação pela qual nos tornamos Seus filhos para Eternidade.

O caminho para o Reino

Mesmo que desejemos alcançar a perfeição e a santificação, não podemos por nossos esforços, se não permanecermos n'Ele. Por isso, o caminho para a obediência e entrada no Seu reino não é o esforço humano simples - pelo qual permanecemos na dimensão humana da lei -, mas estar na presença do Senhor, diariamente, em oração e meditação. Buscar a presença dele é o caminho para permanecer n'Ele. Estar na presença dele nos levará naturalmente a produzir os frutos do Espírito.

Oração: Buscarei, Senhor, continuamente a tua presença. Buscarei, porque o Senhor me escolheu e predestinou para manifestar a tua glória. O Senhor mesmo irá realizar todas as coisas, não será mérito meu. Sou fraca, não tenho disciplina para ser tua serva, mas me escolhestes apesar disso, para que a tua glória fosse manifestada na minha fraqueza. Buscarei a tua presença, porque creio que esse é o caminho para manifestar os teus frutos e me recordar da tua valiosa salvação.




terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

A caminho da Ressurreição



Por um certo racionalismo, tive dificuldade em compreender a Ressurreição como um fenômeno real e não apenas simbólico. Depois, percebi que mesmo quando pensava compreender absolutamente, ainda havia algo mais a entender sobre o seu significado. Nunca compreendemos absolutamente os fenômenos divinos e estamos sempre no caminho de conhecê-los, na verdade; eis o significado da santificação. Nesse longo processo, creio que posso nomear três fases de entendimento sobre a Ressurreição. 

O primeiro momento foi compreendê-la como um retorno a Deus e à sua existência em eternidade e onipresença. Deixar de "ver em parte", para então "ver face a face". Somos parte, manifestações parciais da obra de Deus; enquanto Deus é aquele que é ao mesmo tempo, "aquele que é, e que era, e que há de vir" (Apocalipse 1:8), no passado, presente e futuro. N'Ele, não há o tempo, nem o espaço, apenas o Ser; "Eu sou o que Sou" (Êxodo 3:14). Retornar à eternidade como Espírito elimina todas as divisões e grandes problemas humanos. 
Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
1 Coríntios 13:12
Além disso, viver com a lembrança da Ressurreição e com o conhecimento de que somos membro e parte do Corpo de Cristo também é capaz de transformar o nosso modo de nos relacionarmos com os outros. 

Num segundo momento, passei a observar o sentido da ressurreição no meu dia a dia; em especial por meio da história de Lázaro. É o conhecimento de que todo erro, doença, fracasso, neste mundo pode servir ao propósito de Deus e à sua Glória. Que quando cairmos, sua Graça não deixará de estar nos amparando, porque somos dEle na eternidade.  
Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca morrerá. Crês tu isto?
Este segundo significado da ressurreição nos ensina a perseverar na Terra e a não desanimar. Mas há, ainda, outro modo mais pró-ativo de se pensar a ressurreição.

Todas as conquistas que obtive em Deus ocorreram por obediência diária e não pelo esforço ou determinação. A obediência semeou grandes e pequenos frutos no futuro para mim e me conduziu a terras de abundância e graça. Aprendi, com o passar do tempo, que a melhor forma de "trazer" um futuro almejado, de se obter uma conquista, é se preparando para ela; porque o realizar está em Deus, e a nós, cabe o estar preparado para receber suas bênçãos. Resumidamente, se você aguarda ansiosamente uma visita, comece a arrumar a casa e, quando terminar, ela baterá à sua porta.

Percebemos, assim, que todo acontecimento está nas mãos de Deus. Nada que nos aconteça, acontece sem motivo. Seja como resposta e colheita para os servos obedientes, seja como repreensão e correção para o arrependimento; mas sempre com um bom propósito. A morte, como acontecimento, não é diferente. Ela também não é acaso, fatalidade ou acidente. Quando entendi isso, entendi também que a vida em si é o tempo que temos para "arrumar a casa". Que não devemos fugir dela e ignorar sua "visita", mas "trazê-la" pela preparação. E essa preparação longa e completa é a santificação. 

Ora, se obtemos futuros gloriosos com obediências pequenas, o que não nos aguardará após um longo processo de santificação, de uma vida inteira? É assim que entendi que a morte (ou a Ressurreição) só pode nos trazer uma grande Graça, a maior das recompensas. Mas para crer nisso, é importante ter experimentado as pequenas obediências e a fidelidade de Deus em nos recompensar. E é preciso, também, viver tendo em mente essa constante preparação - para que estejamos prontos no momento em que ela chegar a nós. E se vivemos, é que ainda não estamos.

Naturalmente, a visita nos baterá à porta inevitavelmente. Para os que se preparam, quando estiverem prontos; mas para os que a evitam, quando não estiverem prontos.

Nesse sentido, saber da Ressurreição é caminhar com humildade de aprendiz diante dos sofrimentos que enfrentamos, sabendo que Deus quer nos santificar e que tem um bom propósito no nosso sofrimento. Quer corrigir-nos, para que nos aproximemos mais da sua Imagem e semelhança. Os passos diários de santificação, que nos fazem crescer em Deus, dão frutos permanentes e trazem recompensas para a nossa vida na terra. Mas não só. A própria caminhada na santificação é obediência e dá frutos para a Vida Eterna.


A diferença entre a caminhada para a ressurreição e vida e a caminhada para a morte não é a ausência de pecado, mas a postura no caminhar. Quando caminhamos para a morte, ao pecarmos e sermos repreendidos, agimos com rebeldia e altivez, negando a bondade de Deus para justificar nossos erros. E, assim, vamos nos afastando do conhecimento d'Ele. Quando caminhamos para a vida, mesmo quando caímos e erramos, mesmo quando agimos com rebeldia e altivez, somos conduzidos ao arrependimento. E se retornamos, é porque nos lembramos de que o Seu Caminho é o único capaz de conduzir à vida e a salvação. 

Nada será vão, no caminho da Vida. Nenhum tempo é perdido, buscando o Seu Reino. Além de termos a certeza de que amanhã seremos melhores do que hoje, e que Ele garantirá o nosso sustento enquanto o buscamos, sabemos que toda santificação é uma preparação para algo ainda maior do que as pequenas vitórias que obtivemos e que ainda teremos. Dá-nos perseverança para permanecer até o fim, Senhor, e que possamos estar contigo no Grande Dia, para te glorificar.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

A igreja de Abraão e Jesus


Quando Abrão completou noventa e nove anos, Iaweh lhe apareceu e lhe disse: "Eu sou El Shaddai, anda na minha presença e sê perfeito. Eu instituo minha aliança entre mim e ti, e te multiplicarei extremamente."
Gênesis 17:1-2 (trad. Bíblia de Jerusalém)

A Bíblia conta a história de Abrão (cujo nome Deus mudaria para Abraão) no livro de Gênesis, do capítulo 12 ao 25. Embora outras personagens bíblicas tenham experimentado a relação pessoal com o Deus vivo, é por meio de Abraão que essa experiência se tornará uma aliança de gerações e a fé judaica se tornará uma religião. Em meio a uma era em que os deuses eram concebidos como entidades distantes dos homens, alguns poucos tiveram o privilégio de conhecer a Deus, por meio de um chamado pessoal. Não havia nenhuma igreja que o pregasse, nem pessoas que evangelizassem sobre Ele. Não havia, sequer, um livro como a Bíblia, que narrasse sobre os feitos de Deus e ajudasse aqueles que o buscavam a conhecer sua personalidade. 

Naquele tempo, mesmo o sentido de obedecer a Deus e ser bom diante d'Ele era nebuloso. O que agradaria a Deus? Será que Ele se agradaria de sacrifícios humanos, como Baal, por exemplo? Essa é, aliás, uma das dúvidas de Abraão, ao levar seu filho Isaque ao altar, diante d'Ele. Deus aceitou aquele sacrifício. Não o da morte, mas o da vida: a oferta que Abraão fez de seu filho único (e de sua descendência) para Deus. A oferta viva de Abraão agradou tanto a Deus, que Ele a repetiria, no futuro, selando o ciclo judaico, ao oferecer, Ele mesmo, o seu único filho, numa demonstração de amor e aliança com os homens. E, apesar de não termos sido bons o suficiente para receber essa oferta viva como Deus a recebeu (porque nós O sacrificamos), a oferta foi feita e, por meio dela, Deus selou uma aliança eterna com o seu povo. 

Na época de Jesus, havia sim os templos. E havia a Bíblia também. Entretanto, o povo de Deus revelou um grande desconhecimento, porque haviam se esquecido da relação pessoal com Ele. Há duas passagens em especial, na Bíblia, em que Jesus nos ensina sobre a verdadeira relação com Deus.
Respondeu-lhes Jesus: "Destruí esse santuário e em três dias eu o levantarei". Disseram-lhe, então, os judeus: "Quarenta e seis anos foram precisos para se construir esse santuário, e tu o levantarás em três dias?" Ele, porém, falava do santuário de seu corpo. Assim, quando ele ressuscitou dos mortos, seus discípulos lembraram-se de que dissera isso, e creram na Escritura e na palavra dita por Jesus.
João 2:19-22
Jesus queria restaurar um outro templo: o nosso corpo. Por meio da restauração desse templo, poderia ser reconstruída também a nossa relação pessoal com Ele. E a primeira coisa a se relembrar, ao restaurarmos nossa relação íntima e pessoal com Deus é que não se trata de "ondes" - em qual igreja, por exemplo -, mas "comos". Ao menos, é isto que Jesus deixa bastante claro para a mulher samaritana, quando ela lhe pergunta sobre a correta "prática religiosa":
Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade. 
João 4:20-24

Quando Jesus reconstrói a ideia de adoração para aquela mulher, ele não está apenas dizendo que não importa faz onde ela irá adorar, mas que importa que esta adoração seja constante em sua vida. Não é possível adorar a Deus em espírito e em verdade apenas quando vamos a uma igreja. A relação com Deus é uma relação a ser construída e tornada real diariamente por meio da santificação e busca pessoal. 

Esta postura não elimina a igreja da vida do cristão, mas a coloca em segundo plano. O mais frequente, depois da conversão, é trocarmos nossa relação pessoal pela vida na igreja - como se esta pudesse resumir a imensidão da nossa experiência de encontro com Jesus. Ou ainda, na melhor das hipóteses, vivemos a relação pessoal como um complemento para a vida na igreja; oramos diariamente, fazemos leituras bíblicas como uma espécie de "tarefa de casa", muitas vezes recomendadas pela igreja. 

Ora, não podemos nos apoiar sobre a igreja, delegando a ela a responsabilidade sobre o nosso caminhar com Deus. Que diremos quando aqueles em quem nos apoiamos tropeçarem? 
Então disse Adão: A mulher que me deste por companheira, ela me deu da árvore, e comi. E disse o Senhor Deus à mulher: Por que fizeste isto? E disse a mulher: A serpente me enganou, e eu comi.

Culto pessoal


Davi compunha músicas para louvar a Deus em particular. Abraão erguia altares no meio do deserto em adoração. Jó conversava com Deus. Todos caminhavam com Deus; mantinham a mente n'Ele, aprendendo, consultando, adorando. Para além desta postura diária, que deve nos acompanhar nos ônibus e ruas - quando estamos em silêncio -, agrada a Deus erigirmos um culto pessoal a Ele. O que eu posso fazer para construir um culto diário para Ele? Posso escrever a minha própria "mensagem", baseada nos aprendizados e conhecimentos que tenham buscado obter dele. Posso dançar um louvor, se sei (ou gosto de) dançar, ou cantar uma música. Se for músico, posso compor, inclusive. Se não sei, posso aprender a fazer algo para servi-lo. 

É possível criarmos em nosso lar e nossa vida um momento de culto pessoal, que demarque a nossa intimidade e desejo de aproximação, para além da religiosidade da igreja. O culto com a igreja será, então, uma oportunidade para servir a Deus, compartilhar graças, dar de si, abençoar outras pessoas - mais do que ser servido, receber graças e ser abençoado. Sejamos bênção para aqueles em nosso entorno. Tenhamos profundidade e largura em nossa relação com Deus. Nos tornemos tudo para o que fomos recriados:
Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz;
Todos nós, convertidos, podemos e somos chamados a ser Sacerdócio, não apenas os pastores, ministros, diáconos. Todos nós somos chamados a caminhar para sermos Davis e Abraãos e Jós. Que nos apropriemos de nossa identidade real, para vivermos aquilo para o qual fomos chamados: anunciar as virtudes de Deus.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Deus é anarquista


A Anarquia como sistema político, no Antigo Testamento

Ponto inicial para que eu aderisse à Anarquia como perspectiva política foi analisar a passagem em que Saul é erigido rei de Israel. Até surgir Saul, Israel não tinha rei. Teve profetas, juízes, naturalmente tornados pessoas de confiança do povo, a quem voluntariamente se dirigiam para consultar. Talvez eu não tivesse observado isso com calma até então. O fato de que Israel tenha passado a ter um Rei também não é óbvio nem natural. Segundo a narrativa bíblica, o povo quis ter um rei para se assemelhar às outras nações, considerando o dado como privilégio. E eis como Deus recebeu e tratou a vontade do povo, a Ele trazida pelo profeta Samuel.
Porém esta palavra pareceu mal aos olhos de Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei, para que nos julgue. E Samuel orou ao SENHOR. E disse o SENHOR a Samuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, pois não te têm rejeitado a ti, antes a mim me têm rejeitado, para eu não reinar sobre eles.  1 Samuel 8:6-7
Aconselho a leitura do capítulo completo, na verdade (1 Samuel 8), em que Deus discursa prevenindo o povo sobre o significado do que eles estão pedindo - ou seja, o que é ter um "rei" (já que o povo não sabia ainda). Entretanto, na descrição, reconheceríamos facilmente um presidente de nossa época. Para aquele povo, estar sob o governo de alguém seria profundamente degradante. Mas eles decidem  insistir na sua vontade e Deus a permite, como livre arbítrio.

A anarquia como perspectiva filosófica, no Novo Testamento

No novo testamento, a discussão não é política, mas filosófica e teológica. Um dos grandes debates do novo testamento, especialmente evidente no livro de Gálatas, é a oposição entre Lei e Fé. A Lei, negação primeira também na doutrina anarquista, está associada à religiosidade e ao cumprimento objetivo de mandamentos e dogmas institucionais. A Fé, por outro lado, é pessoal, invisível e não impositiva, age de dentro para fora. Para o apóstolo Paulo, no novo testamento,
...o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo, temos também crido em Jesus Cristo, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da lei; porquanto pelas obras da lei nenhuma carne será justificada. Gálatas 2:16
Assim sendo, o melhor a fazermos, seria abandonarmos toda preocupação com o cumprimento da Lei, e vivermos segundo a fé que temos em nós. Qual seria o resultado disso? Uma vida desregrada? Desobediência às autoridades? Talvez. A questão é que só sabemos a fé que há em nós (ou que não há em nós) quando abandonamos a obrigatoriedade da Lei.

A anarquia como eixo subjetivo, em Jesus

Fé e Amor, eis o que passa a nos governar, num mundo anárquico. Imagine-se então uma cristã "recém-anarquizada", que começa a faltar com seus compromissos, deixar de cumprir com alguns princípios sociais e que, por agir totalmente guiada por suas convicções, em suas transgressões, se considera justificada. Talvez ela tenha abolido de fato outros reis, em favor do governo de Deus em sua vida; às custas até mesmo do seu próprio prejuízo, esteja correndo riscos. Ela se jogou de cabeça, agiu por fé. Ela começa a cumprir o primeiro dos dois principais mandamentos (que, em realidade, não se cumpre sozinho): "Amar a Deus sobre todas as coisas".

O problema desta cristã recém-anarquizada é que o seu coração verdadeiro (por detrás da hipocrisia de qualquer obediência legalista) é egoísta e, numa situação de liberdade, tende a buscar apenas o próprio bem estar e a priorizar a sua própria felicidade. Dessa forma, a anarquia para ela representou um abandono total dos compromissos e valores. O que ela nomeou como "compromissos e valores" são, na verdade, necessidades, sentimentos e desejos de outros; e muitas pessoas podem ter sofrido injustamente por conta dessa negligência. O respeito e o amor ao próximo, mais do que a Lei, é o que deve nos levar a tomar algumas atitudes que talvez sejam até mesmo um pouco sacrificiais.

Dessa forma, não há por que pensar que a anarquia conduza necessariamente ao caos; ela pode, na pior das hipóteses, revelar o que há por trás de um cumprimento hipócrita da Lei. Trazer à Luz. O que garante o perfeito funcionamento social não são as leis, mas o amor. Não à toa, Jesus resumiu a Lei a apenas dois mandamentos, os mandamentos de amor.

"'Amar a Deus sobre todas as coisas e Amar ao próximo como a si mesmo', nisso se resume a Lei e os mandamentos"

A Princípio, o amor próprio e o amor ao próximo parecem inconciliáveis. Quando me amo em primeiro lugar, negligencio compromissos e princípios em meu favor. Quando amo ao outro primeiro, negligencio minha saúde e minha felicidade em favor do outro. Nos dois casos, eu me destruo e desestabilizo a minha relação com o outro. Mas se eu amo ao próximo como a mim mesma, edifico a ambos. Isso quer dizer que eu não colocarei a minha saúde e felicidade sempre acima das necessidades e desejos do outro, nem colocarei as necessidades e desejos do outro sempre acima da minha saúde e felicidade. Ambos devem ser satisfeitos, ainda que a satisfação do outro sempre represente, de certa forma, um sacrifício pessoal; o limite do meu ego. A disciplina se encontra, de fato, no equilíbrio perfeito entre o meu amor próprio e meu amor ao próximo, mas é o amor que devemos desejar e não a disciplina em si, que é consequência.

Por fim, creio que podemos lembrar do famoso capítulo de 1 Coríntios 13, sobre o amor, de modo que a nossa bondade seja completa na Fé. Lendo-o hoje, penso que o objetivo dessa descrição de Paulo não é que concluamos se o que sentimos por alguém é amor ou outro sentimento, mas que julguemos se sabemos amar de fato.
O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece...
1 Coríntios 13:4-8
Se você se ressentiu de ainda não ter chegado nesse "nível" e pensou em como mudar, lembre-se de que o amor também não é uma "habilidade" que se conquiste, produto do esforço ou de qualquer relação de "troca" meritória. O amor não é uma prática economicista. Por tratarmos o amor assim, é que, muitas vezes, o perdemos de vista. Antes, é dom e é gratuito. A única forma de se tornar amoroso é, sem a pretensão de "conquistá-lo", tornar-se aberto e sensível para a experiência.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Obediência e obstinação




Por mais que vos prepareis para a luta haveis de ficar apavorados. Por mais planos que façais, eles serão frustrados. Por mais que pronuncieis a vossa decisão, ela não se manterá. 
Isaías 8:9b-10a (versão citada da Bíblia de Jerusalém)



Enquanto lia Isaías, e refletia sobre as profecias de Deus, me deparei com esse versículo. Trata-se da fala de Deus para os adversários do seu povo e não para o seu próprio povo. Mesmo assim, ao ler a passagem, não pude deixar de identificá-la comigo. E acho que há muitos de nós que se veem nessa condição: mesmo quando "está em dia com as obrigações", sente ansiedade; mesmo quando se prepara para uma palestra ou para uma atividade profissional ou outro desafio, sente-se atemorizado. Chegamos a pensar, às vezes, se vale à pena, tanto esforço. 

Quantos projetos, por outro lado, deixamos de realizar, seja por não ter a capacidade de realização e de levá-los até o fim, seja por encontrar muitas barreiras à nossa frente? E, em momentos de grande fracasso, chegamos a nos perguntar por que Deus estaria bloqueando o nosso caminho - há um motivo. Quantas vezes não temos precisado voltar atrás em nossas palavras e descumprir acordos, prazos, horários e compromissos, e nos sentimos, mesmo que por um momento, humilhados diante da nossa incapacidade e frequente procrastinação?

Os falsos profetas, aqueles que dizem "paz, quando não há paz" e "curam superficialmente o mal" do povo (Jeremias 6:14), diriam: "confie em Deus, tudo vai dar certo!" ou "somos imperfeitos, aceite com humildade!". Apesar das boas intenções destes, nada muda dentro de nós ou em nossa vida. Continuamos a nos sentir ansiosos e frustrados. Na verdade, Deus mesmo determinou sobre nós: 
Por mais que vos prepareis para a luta haveis de ficar apavorados. Por mais planos que façais, eles serão frustrados. Por mais que pronuncieis a vossa decisão, ela não se manterá. 
Isaías 8:9b-10a (versão citada da Bíblia de Jerusalém)

E até que convertamos o nosso coração endurecido, não seremos transformados. O propósito de Deus nesta decisão é corrigir a nossa obstinação, nosso coração obstinado. Oscilamos entre "deixar tudo nas mãos de Deus" e "confiar em nós mesmos". Naturalmente, há aqueles de nós que optam ainda por "seguir a Lei". Estes, dos três grupos, são os que mais sofrem, porque sofrem, não só com o fracasso, mas com a culpa pelo pecado. Esse último grupo precisa aprender mais sobre a Graça. Mas os que já conhecem a Graça de Deus e não querem se submeter à Lei, muitas vezes não encontram o "caminho estreito", ou o "caminho do meio". 

O que é a obstinação? 

Obstinado estava o Faraó, quando decidiu firmemente não libertar os hebreus. Na Bíblia, fala-se também do "coração endurecido". É um estado de espírito que nos impede de obedecer a Deus, seja por idolatria - não querer abrir mão de alguma coisa ou por algo na frente de sua relação com Deus - ou apenas por desconhecimento. No caso do Faraó, sua obstinação estava na idolatria, no amor à riqueza propiciada pelo uso da mão de obra escrava e também no orgulho, que é o amor ao seu próprio poder. 

"Atrevidos, obstinados" são também aqueles que "seguindo a carne, andam em desejos impuros e desprezam dominações" (2 Pedro 2:10, tradução da Sociedade Bíblica Britânica). Somos obstinados, quando agimos apenas movidos pela nossa autoconfiança e vontade de fazer dar certo, mesmo que às custas do corpo - aquele momento em que você diz: daqui pra frente, vou cumprir tudo; hoje, resolverei todos os meus problemas, ou terminarei aquele projeto, ou mudarei minha dieta. Pedro também usa o termo "ambiciosos", ou "gananciosos", segundo algumas traduções. A "decisão firme", a "obstinação", costuma ser valorizada como um gesto positivo, como uma virtude, na nossa época e cultura, e é especialmente praticada às vésperas do ano novo. Sobre esse comportamento, Tiago nos previne:
Ouçam agora, vocês que dizem: "Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro". Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. Ao invés disso, deveriam dizer: "Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo". Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna.
Quando conquistamos e realizamos feitos aos quais nos propomos, quem é glorificado? Nós mesmos. E quando fracassamos, somos também nós que somos humilhados e nos sentimos diminuídos em nosso valor. Apenas por esforço e obrigação, nos recordaríamos de Deus para sinceramente lhe agradecer no sucesso; ou buscaríamos compreender os seus propósitos, no fracasso. Entretanto, contentar-se em dizer "se Deus quiser", como se fosse um mantra seguro, ou o cumprimento da Lei, que garante a realização das nossas pretensões, não tornará o nosso coração menos obstinado e ambicioso.

Em Salmos 78:7-8, Davi nos revela o contrário da obstinação, que são a obediência e a fidelidade a Deus:
Então eles porão a confiança em Deus; não esquecerão os seus feitos e obedecerão aos seus mandamentos. Eles não serão como os seus antepassados, obstinados e rebeldes, povo de coração desleal para com Deus, gente de espírito infiel.

O que é a obediência a Deus?

A palavra "obediência" pode parecer-nos associada à ideia de "submissão" cega à Lei ou a uma ordem qualquer, segundo a nossa cultura e língua. Entretanto, pelo dicionário bíblico-teológico de Johannes Bauer (excelente, por sinal), sabemos que o Antigo Testamento hebraico nem mesmo possuía palavra para "obedecer". A ideia é verbalizada por "escutar", "responder" e "cumprir". Bauer acrescenta que "as expressões como 'escutar', 'responder', etc.. mostram que a relação entre Deus e o homem ou entre Deus e o povo é entendida como um permanente diálogo".

Assim, a ideia de obediência está muito mais associada a de um acordo, compromisso ou aliança estabelecida com Deus. "Desobedecer", nesse sentido, seria quebrar o acordo, enquanto "obedecer" significa ser fiel a ele. Afinal, os mandamentos de Deus, uma vez que os homens creiam neles, não funcionam como leis, mas como um compromisso entre Deus e os homens: "amarás a Deus sobre todas as coisas", "não matarás" etc.

Os acordos que estabelecemos com Deus, além disso, não se limitam aos mandamentos. Eles continuam a ser feitos, diariamente, quando tomamos decisões simples perante Ele. Essa fidelidade, devemos não só aos nossos compromissos feitos diante de Deus, como também aos que são feitos com os homens. Assim, cumprir prazos e horários combinados, por exemplo, são gestos de fidelidade. Podem nos parecer menos relevantes, ou passíveis de serem alterados a qualquer momento, mas esses pequenos gestos de compromisso representam bastante para Deus.

Darei um exemplo simples de conflito. Hoje, após acordar, consultei a Deus em oração e planejei a minha manhã, a partir da reflexão que fiz. O "combinado", com Deus e comigo mesma, era de que eu faria parte do meu trabalho no primeiro horário do dia e, num segundo momento, voltaria a esta postagem, que eu desejava concluir. Aconteceu, porém que, findo o trabalho, tive o ímpeto e a ideia de continuar a trabalhar - havia terminado rápido e estava animada! Minha obstinação (e ambição) dizia: "vou continuar a trabalhar e assim terminarei cedo. Posso terminar a postagem depois".

Entretanto, no mesmo tempo, o espírito me faz recordar que eu havia feito um compromisso; ou seja, uma decisão diante de Deus, de que eu me dedicaria à postagem após finalizar a primeira parte do meu trabalho. Ele me fez lembrar que manter o compromisso e a nossa palavra é importante para Deus, embora eu estivesse considerando, naquele momento, pouco relevante. E assim, recobrando o discernimento, pude me arrepender, e optar por manter aquela decisão, com fidelidade, garantindo que Deus permanecesse no controle da minha vida.

"Obedecer", no limite, é também garantir que estamos agindo segundo a verdade em que acreditamos, convencidos pelo espírito de Deus, e não movidos por impulsos, ganâncias ou outros vícios. É a "obediência" e a fidelidade aos pequenos compromissos que nos tornará, cada dia, mais coerentes com o que acreditamos e com o que se desejamos para nós. Se formos capazes de ser fiéis no pouco, honrando pequenas decisões e compromissos, tanto mais seremos capazes de realizar, no futuro, as coisas boas que sonhamos. É promessa de Deus:

Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te com o teu senhor.
Mateus 25:21 (versão citada da Bíblia de Jerusalém)







sábado, 29 de novembro de 2014

Vós sois o sal da terra e a luz do mundo



Vós sois o sal da terra; e se o sal for insípido, com que se há de salgar? Para nada mais presta senão para se lançar fora, e ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo; não se pode esconder uma cidade edificada sobre um monte; Nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa. Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus.
Mateus 5:14-16

Não se sentir amado por quem amamos e não se sentir útil ao mundo. Sentir que se perde o sentido da vida. Não encontrar amparo, compreensão, ou resposta que baste. Ninguém pode ajudar, porque todos precisam de ajuda, mesmo aqueles que parecem mais fortes e de quem dizemos: você é meu pai ou meu professor, meu chefe, você é mais velho do que eu, é um pastor ou um padre; você deveria dar conta e eu deveria poder contar com você. E, no entanto, eles parecem esperar o mesmo. Necessitados demais para sequer perceber as nossas necessidades. 

Mateus 5:13- 16 responde a esse dilema. Somos nós. Aquilo que cobramos do outro é nosso compromisso. É nossa vocação. E porque não temos sido "sal da terra" e "luz do mundo", nos sentimos imprestáveis, como que "para ser lançado fora e pisado pelos homens". Sejamos, voltemos a ser. Não só o que tem ânimo, mas o que leva ânimo ao outro. Não só o que vê com clareza, mas o que traz luz para que outros possam ver. Não podemos ser menos do que isso.

Foi assim que Ele nos escolheu. 
Vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; Vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia.
Lembremos da nossa identidade. Lembremos também de que não houve outro humano na terra que pudesse responder às nossas questões ou nos amar a ponto de morrer por nós a não ser Jesus. E nós temos a Ele, se reconhecermos que só Ele pode nos livrar de nossas angústias e nos tornar aquilo para o que fomos chamados.

Oração: Jesus, você conhece o amor, porque não olhou para o seu próprio sofrimento, mesmo que ele fosse muito grande, mas para o sofrimento do outro. Ensina-me a amar. Você é luz do mundo, e foi a luz enquanto esteve no mundo, continuai a ser luz por nosso meio, porque para isso estamos aqui. Que o teu sal nos salgue novamente a alma insípida, porque reconhecemos que só no teu Espírito habita esse dom.


quinta-feira, 21 de março de 2013

O sofrimento e a Graça

 
Quando descobri o poder e a abundância da Graça de Deus em minha vida, simplesmente decidi que não aceitaria mais o sofrimento. Acreditei que viver no caminho de Deus era desfrutar eternamente dessa Graça. Entretanto, os desafios e os desertos chegaram. E ficaram. A princípio, comecei a rever meus passos e considerar que aqueles sofrimentos deveriam ser uma repreensão de Deus sobre decisões mal feitas, ou consequências de erros passados. Eu só poderia estar fora do caminho dEle... e com esse pensamento, de fato comecei a me afastar, crendo que Ele não me responderia. Comecei a procurar intermediários pra nossa relação.
 
Demorou pra que eu percebesse que estava caindo, com essa lógica, mais uma vez no legalismo, no fatalismo, na causalidade, que não são caráter de Deus, universal e eterno. Eu não tinha entendido onde se encaixava o "sofrimento" dentro da "lei" da Graça. Durante esse tempo, Deus usou como exemplo pra mim duas figuras bíblicas, pra me ajudar a compreender sua forma de agir. Jó e José. O que José e Jó têm em comum? O fato de claramente terem sofrido não para "expiarem" erros passados, mas para que Deus fosse glorificado neles.
 
José foi vendido como escravo pelos irmãos, foi preso injustamente no Egito, como se caminhasse para sua cova. Jó, por outro lado, perdeu tudo o que tinha das bênçãos de Deus. E como é difícil crer que estamos caminhando para algo melhor quando o que vemos na nossa vida é a decadência dos planos... Porém, mais do que sonhos ou expectativas sobre Deus, o que lhes ensinou a serem fiéis foi a humildade em aceitar os sofrimentos externos.
 
No capítulo 16 (v. 21), vemos Jó demonstrar uma certa resignação, misturada a uma fé sobrenatural no poder e controle de Deus: "Ah! se alguém pudesse contender com Deus pelo homem, como o homem pelo seu próximo!". E ao mesmo tempo, Jó é capaz de dizer "Ainda que ele me mate, nele esperarei" Jó 13:15. Jó ama a Deus no sofrimento, ainda que o seu sofrimento provenha dEle. Jó não ama a Deus por suas bênçãos, nem deixa de admirar o Seu poder, na sua dificuldade.
 
Acho que fiquei mal acostumada com as bênçãos de Deus e vitórias contínuas que Ele me concedeu. Mas quero corrigir minha relação com Ele, que é mais importante do que quer que eu possa conquistar. A Sua presença, o Seu amor, a Sua palavra... Por isso, opto por padecer com amor as minhas dores, minhas carências, minhas doenças, assumindo a minha fraqueza, me rendendo a Ele, descansando e confiando nEle; o Deus poderoso, que me resgatou para a liberdade, que me amou e me ama, me ama.