Por mais que vos prepareis para a luta haveis de ficar apavorados. Por mais planos que façais, eles serão frustrados. Por mais que pronuncieis a vossa decisão, ela não se manterá.
Isaías 8:9b-10a (versão citada da Bíblia de Jerusalém)
Enquanto lia Isaías, e refletia sobre as profecias de Deus, me deparei com esse versículo. Trata-se da fala de Deus para os adversários do seu povo e não para o seu próprio povo. Mesmo assim, ao ler a passagem, não pude deixar de identificá-la comigo. E acho que há muitos de nós que se veem nessa condição: mesmo quando "está em dia com as obrigações", sente ansiedade; mesmo quando se prepara para uma palestra ou para uma atividade profissional ou outro desafio, sente-se atemorizado. Chegamos a pensar, às vezes, se vale à pena, tanto esforço.
Quantos projetos, por outro lado, deixamos de realizar, seja por não ter a capacidade de realização e de levá-los até o fim, seja por encontrar muitas barreiras à nossa frente? E, em momentos de grande fracasso, chegamos a nos perguntar por que Deus estaria bloqueando o nosso caminho - há um motivo. Quantas vezes não temos precisado voltar atrás em nossas palavras e descumprir acordos, prazos, horários e compromissos, e nos sentimos, mesmo que por um momento, humilhados diante da nossa incapacidade e frequente procrastinação?
Os falsos profetas, aqueles que dizem "paz, quando não há paz" e "curam superficialmente o mal" do povo (Jeremias 6:14), diriam: "confie em Deus, tudo vai dar certo!" ou "somos imperfeitos, aceite com humildade!". Apesar das boas intenções destes, nada muda dentro de nós ou em nossa vida. Continuamos a nos sentir ansiosos e frustrados. Na verdade, Deus mesmo determinou sobre nós:
Por mais que vos prepareis para a luta haveis de ficar apavorados. Por mais planos que façais, eles serão frustrados. Por mais que pronuncieis a vossa decisão, ela não se manterá.
Isaías 8:9b-10a (versão citada da Bíblia de Jerusalém)
E até que convertamos o nosso coração endurecido, não seremos transformados. O propósito de Deus nesta decisão é corrigir a nossa obstinação, nosso coração obstinado. Oscilamos entre "deixar tudo nas mãos de Deus" e "confiar em nós mesmos". Naturalmente, há aqueles de nós que optam ainda por "seguir a Lei". Estes, dos três grupos, são os que mais sofrem, porque sofrem, não só com o fracasso, mas com a culpa pelo pecado. Esse último grupo precisa aprender mais sobre a Graça. Mas os que já conhecem a Graça de Deus e não querem se submeter à Lei, muitas vezes não encontram o "caminho estreito", ou o "caminho do meio".
O que é a obstinação?
Obstinado estava o Faraó, quando decidiu firmemente não libertar os hebreus. Na Bíblia, fala-se também do "coração endurecido". É um estado de espírito que nos impede de obedecer a Deus, seja por idolatria - não querer abrir mão de alguma coisa ou por algo na frente de sua relação com Deus - ou apenas por desconhecimento. No caso do Faraó, sua obstinação estava na idolatria, no amor à riqueza propiciada pelo uso da mão de obra escrava e também no orgulho, que é o amor ao seu próprio poder.
"Atrevidos, obstinados" são também aqueles que "seguindo a carne, andam em desejos impuros e desprezam dominações" (
2 Pedro 2:10, tradução da Sociedade Bíblica Britânica). Somos obstinados, quando agimos apenas movidos pela nossa autoconfiança e vontade de fazer dar certo, mesmo que às custas do corpo - aquele momento em que você diz: daqui pra frente, vou cumprir tudo; hoje, resolverei todos os meus problemas, ou terminarei aquele projeto, ou mudarei minha dieta. Pedro também usa o termo "ambiciosos", ou "gananciosos", segundo algumas traduções. A "decisão firme", a "obstinação", costuma ser valorizada como um gesto positivo, como uma virtude, na nossa época e cultura, e é especialmente praticada às vésperas do ano novo. Sobre esse comportamento, Tiago nos previne:
Ouçam agora, vocês que dizem: "Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro". Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa. Ao invés disso, deveriam dizer: "Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo". Agora, porém, vocês se vangloriam das suas pretensões. Toda vanglória como essa é maligna.
Quando conquistamos e realizamos feitos aos quais nos propomos, quem é glorificado? Nós mesmos. E quando fracassamos, somos também nós que somos humilhados e nos sentimos diminuídos em nosso valor. Apenas por esforço e obrigação, nos recordaríamos de Deus para sinceramente lhe agradecer no sucesso; ou buscaríamos compreender os seus propósitos, no fracasso. Entretanto, contentar-se em dizer "se Deus quiser", como se fosse um mantra seguro, ou o cumprimento da Lei, que garante a realização das nossas pretensões, não tornará o nosso coração menos obstinado e ambicioso.
Em
Salmos 78:7-8, Davi nos revela o contrário da obstinação, que são a obediência e a fidelidade a Deus:
Então eles porão a confiança em Deus; não esquecerão os seus feitos e obedecerão aos seus mandamentos. Eles não serão como os seus antepassados, obstinados e rebeldes, povo de coração desleal para com Deus, gente de espírito infiel.
O que é a obediência a Deus?
A palavra "obediência" pode parecer-nos associada à ideia de "submissão" cega à Lei ou a uma ordem qualquer, segundo a nossa cultura e língua. Entretanto, pelo dicionário bíblico-teológico de Johannes Bauer (excelente, por sinal), sabemos que o Antigo Testamento hebraico nem mesmo possuía palavra para "obedecer". A ideia é verbalizada por "escutar", "responder" e "cumprir". Bauer acrescenta que "as expressões como 'escutar', 'responder', etc.. mostram que a relação entre Deus e o homem ou entre Deus e o povo é entendida como um permanente diálogo".
Assim, a ideia de obediência está muito mais associada a de um acordo, compromisso ou aliança estabelecida com Deus. "Desobedecer", nesse sentido, seria quebrar o acordo, enquanto "obedecer" significa ser fiel a ele. Afinal, os mandamentos de Deus, uma vez que os homens creiam neles, não funcionam como leis, mas como um compromisso entre Deus e os homens: "amarás a Deus sobre todas as coisas", "não matarás" etc.
Os acordos que estabelecemos com Deus, além disso, não se limitam aos mandamentos. Eles continuam a ser feitos, diariamente, quando tomamos decisões simples perante Ele. Essa fidelidade, devemos não só aos nossos compromissos feitos diante de Deus, como também aos que são feitos com os homens. Assim, cumprir prazos e horários combinados, por exemplo, são gestos de fidelidade. Podem nos parecer menos relevantes, ou passíveis de serem alterados a qualquer momento, mas esses pequenos gestos de compromisso representam bastante para Deus.
Darei um exemplo simples de conflito. Hoje, após acordar, consultei a Deus em oração e planejei a minha manhã, a partir da reflexão que fiz. O "combinado", com Deus e comigo mesma, era de que eu faria parte do meu trabalho no primeiro horário do dia e, num segundo momento, voltaria a esta postagem, que eu desejava concluir. Aconteceu, porém que, findo o trabalho, tive o ímpeto e a ideia de continuar a trabalhar - havia terminado rápido e estava animada! Minha obstinação (e ambição) dizia: "vou continuar a trabalhar e assim terminarei cedo. Posso terminar a postagem depois".
Entretanto, no mesmo tempo, o espírito me faz recordar que eu havia feito um compromisso; ou seja, uma decisão diante de Deus, de que eu me dedicaria à postagem após finalizar a primeira parte do meu trabalho. Ele me fez lembrar que manter o compromisso e a nossa palavra é importante para Deus, embora eu estivesse considerando, naquele momento, pouco relevante. E assim, recobrando o discernimento, pude me arrepender, e optar por manter aquela decisão, com fidelidade, garantindo que Deus permanecesse no controle da minha vida.
"Obedecer", no limite, é também garantir que estamos agindo segundo a verdade em que acreditamos, convencidos pelo espírito de Deus, e não movidos por impulsos, ganâncias ou outros vícios. É a "obediência" e a fidelidade aos pequenos compromissos que nos tornará, cada dia, mais coerentes com o que acreditamos e com o que se desejamos para nós. Se formos capazes de ser fiéis no pouco, honrando pequenas decisões e compromissos, tanto mais seremos capazes de realizar, no futuro, as coisas boas que sonhamos. É promessa de Deus:
Muito bem, servo bom e fiel! Sobre o pouco foste fiel, sobre o muito te colocarei. Vem alegrar-te com o teu senhor.
Mateus 25:21 (versão citada da Bíblia de Jerusalém)